Álvaro Magalhães

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     “Para mim, o sonho é uma realidade que levo muito a sério. Há pessoas que dizem que, se não sonhássemos durante a noite, enlouquecíamos. Eu acho que enlouquecia se não sonhasse também durante o dia. A escrita é uma espécie de sonho diurno.”

          Estreando-se na poesia, publicou em 1982 o seu primeiro livro para crianças, “História com muitas letras”, sobre o qual afirmou [] tinha 20 e tal anos e pensava que ia fazer uma carreira de poeta sobretudo. Comecei a escrever esse livro para a minha filha quando ela tinha 6 anos e andava a aprender a ler e a escrever, e percebi nessa altura que escrever para os mais novos ou escrever poesia era a mesma coisa. A partir daí, praticamente, nunca mais deixei de escrever.

           Desde então construiu uma vasta obra, atualmente com cerca de oitenta títulos, em que a força do imaginário e da palavra (A linguagem é muito importante porque temos de aprender a língua, mas também de a desaprender, e ver como as crianças, por exemplo, reinventam permanentemente a partir das suas necessidades. Por exemplo, há muitas incorreções gramaticais nos meus livros; gosto muito da inocência linguística, do modo como os mais novos se exprimem com erros, de forma criativa, para se conseguirem explicar. A linguagem é, portanto, a base dos meus livros. Eu não conto só histórias; tento contar histórias em que as próprias palavras também assumam protagonismo. É importante, muito importante, a linguagem.) estão sempre presentes e em que a imaginação e o sonho são tidos como fatores indispensáveis para a formação do indivíduo. Questionado sobre a razão de, nos seus livros, tantas coisas acontecerem durante o sonho, explicou [] A fantasia, para mim, é mais importante do que a realidade. Não gosto muito da realidade, embora ela seja, como diz o Woody Allen, «o melhor sítio para se comer um bom bife com batatas fritas», mas estou sempre a corrigir a realidade com o sonho e a fantasia. Há um poema meu, que está no livro “O Reino Perdido”, que acaba assim: «Melhor que viver é sonhar a vida». É isso que tenho feito, sonhar a vida, e a literatura tem-me ajudado muito a fazer isso.

           Autor de uma obra diversificada, integrando poesia, contos, ficção, narrativas juvenis e textos dramáticos, veio posteriormente enriquecê-la com a série “Triângulo Jota”, narrativas de mistério que despertaram um enorme interesse dos leitores e que foi adaptada para televisão.

         Considerado um dos mais importantes escritores da sua geração, pela originalidade e também pela irreverência, foi várias vezes premiado pela Associação Portuguesa de Escritores, pelo Ministério da Cultura, e também pelo IBBY (International Board on Books for Young People), que distinguiu “O Limpa-palavras e outros poemas” como o melhor texto publicado em 2000 e 2001, fazendo-o constar na Honour List do Prémio Hans Cristian Anderson de 2002. Em 2004, “Hipopótimos – Uma história de amor” foi distinguido com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian e, em 2014, “O Senhor Pina” recebeu o Prémio Autores, da Sociedade Portuguesa de Autores, para melhor livro infanto-juvenil.

         Vários títulos seus integram o Plano Nacional de Leitura e constam do corpus das Metas Curriculares de Português, estando parte da sua obra publicada em Espanha, França, Brasil e Coreia do Sul.

       Sobre a importância e o prazer da leitura é perentório: É importante gostar de ler porque ler transforma-nos. Eu tenho a certeza que não seria a mesma pessoa se não tivesse lido certos livros que li na minha infância e adolescência. É uma oportunidade muito grande para nos transformarmos e realizarmos enquanto pessoas.

 

Consulte aqui a bibliografia.

 

O Limpa – Palavras

Limpo palavras.

Recolho-as à noite, por todo o lado:

a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.

Trato delas durante o dia e

enquanto sonho acordado.

A palavra solidão faz-me companhia.

 

Quase todas as palavras

precisam de ser limpas e acariciadas:

a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.

Algumas têm mesmo de ser lavadas,

é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias

e do mau uso.

Muitas chegam doentes,

outras simplesmente gastas, estafadas,

dobradas pelo peso das coisas

que trazem às costas.

 

A palavra pedra pesa como uma pedra.

A palavra rosa espalha o perfume no ar.

A palavra árvore tem folhas, ramos altos.

Podes descansar à sombra dela.

A palavra gato espeta as unhas no tapete.

A palavra pássaro abre as asas para voar.

A palavra coração não pára de bater.

Ouve-se a palavra canção.

A palavra vento levanta os papéis no ar

e é preciso fechá-la na arrecadação.

 

No fim de tudo voltam os olhos para a luz

e vão para longe,

leves palavras voadoras

sem nada que as prenda à terra,

outra vez nascidas pela minha mão:

a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

 

A palavra obrigado agradece-me.

As outras não.

A palavra adeus despede-se.

As outras já lá vão, belas palavras lisas

e lavadas como seixos do rio:

a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

 

Vão à procura de quem as queira dizer,

de mais palavras e de novos sentidos.

Basta estenderes a mão para apanhares

a palavra barco ou a palavra amor.

 

Limpo palavras.

A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.

Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.

A palavra fogão cozinha o meu jantar.

A palavra brisa refresca-me.

A palavra solidão faz-me companhia.

in O Limpa-Palavras e Outros Poemas

 

 

Leia aqui outros textos do autor.

 

MJLeite

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