Mário de Carvalho

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[…] sou efectivamente um homem da ficção. Ficção vem do latim fictio, que significa moldar com o dedo, modelar. O meu trabalho é muito esse. É o trabalho de modelar personagens, situações, acções. De maneira que o qualificativo é capaz de ser adequado. Eu prezo muito a língua portuguesa. É uma língua muito rica, com muita variedade lexical e vocabular, e com muito poder expressivo. […] nós podemos dizer as coisas em português das mais diversas maneiras e o trabalho do escritor está em encontrar qual é aquela mais expressiva, qual é a que melhor se adequa à narrativa, a que melhor conta a história ou que melhor exprime os sentimentos. […]

Nascido em Lisboa, após uma breve passagem por Setúbal, a família fixou-se na capital, visitando amiúde os familiares em Alvalade, Santiago do Cacém, aí construindo a sua memória das terras alentejanas e das situações de miséria e humilhação vividas naquele tempo pelos camponeses.

Aprendeu a ler com a mãe ainda antes dos cinco anos com a ajuda da «Cartilha Maternal» de João de Deus e prosseguiu os seus estudos primeiro no Liceu Gil Vicente e depois no Liceu Camões, sendo neste último aluno de Mário Dionísio e colega de turma de João Aguiar e Eduardo Prado Coelho. Na faculdade de Direito participou na movimentação académica de 1962, fazendo greve aos exames, envolvendo-se ativamente nos movimentos estudantis, designadamente nas secções culturais e cineclubes universitários.

O seu pai, Domingos de Carvalho, escreveu um livro de poemas, «Joio Sem Trigo», que teve uma boa aceitação, mas que logo foi apreendido pela polícia política, o mesmo acontecendo a dois outros livros. MdC lembra-se do clima de medo que levaria o pai a mudar frequentemente de aspeto, talvez com alguma ingenuidade, pois era um comerciante estabelecido e conhecido na baixa lisboeta, e do facto de desconhecidos de poucas palavras pernoitarem, por vezes, lá em casa (saberia mais tarde que um dos alojados fora o professor Ruy Luís Gomes, candidato à Presidência da República pela Oposição Democrática, em 1951, candidatura que seria rejeitada pelo Conselho de Estado).

Na campanha presidencial de 1958, Domingos Carvalho envolveu-se ativamente no apoio ao general Humberto Delgado, e em 1959 foi preso, sujeito à tortura do sono e levado a julgamento. As circunstâncias desta prisão e o desespero que se lhe seguiu ficaram profundamente marcados na memória de MdC.

Em 1959, também MdC chegou a ser preso num calabouço do Castelo de S. Jorge por falar inglês com uma amiga inglesa sem ser «intérprete” oficial. Ele e outros colegas do liceu passavam humilhações (“Era o tempo aviltado das denúncias, da bufaria, da corrupção formigueira, de um Portugal rasteirinho e torpe. Nos próprios liceus o autoritarismo imperava. Nomeava-se para chefes de turma os mais graduados da mocidade portuguesa, uma organização juvenil fardada, …”).

A seguir à onda de repressão de 1965, que levou à prisão centenas de estudantes, fez parte do organismo clandestino encarregado de reorganizar o PCP na universidade de Lisboa. Já licenciado, e durante o serviço militar, foi preso pela polícia política, sujeito a onze dias de privação de sono (circunstância que inspirou o filme de José Barahona “Quem é Ricardo?”), e condenado a dois anos de prisão, grande parte dos quais cumpridos nas cadeias de Caxias e Peniche.

Em liberdade condicional, em 1973 avisaram-no que seria reincorporado no exército com guia para o batalhão disciplinar de Penamacor, onde eram agrupados, na altura, os criminosos de delito comum, decidindo exilar-se. Passou a fronteira ilegalmente e foi para Paris onde viveu durante algum tempo em casa de amigos, seguindo depois para Lund, na Suécia, onde tinha família, e onde se lhe juntaram mulher e filhas.

Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, regressou a Portugal, conhecendo então José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Velho da Costa, entre outros.

Após um período de intenso envolvimento, distancia-se da atividade política para se dedicar a outras causas, com relevo para as sindicais.

No final dos anos setenta, ligou-se ao grupo «Quatro Elementos Editores», uma pequena editora de Lisboa, animado por Fernando Guerreiro. Em 1981, publicou «Contos da Sétima Esfera» (“surpreendente, desconcertante, inclassificável na tradição portuguesa”, nas palavras do crítico João Gaspar Simões) e «Casos do Beco das Sardinheiras» e, em 1982, «O Livro Grande de Tebas, Navio e «Mariana», publicando desde então com regularidade em vários géneros, passando pelo conto, pela novela, pelo romance, pelo teatro,…

O seu livro mais reeditado, traduzido e premiado foi o romance “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde” e que, na sequência do Prémio Pégaso de Literatura, foi traduzido para inglês, francês, alemão, italiano e outras línguas.

Em 1995, publicou o romance satírico “Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto”, inaugurando o género a que chamou «cronovelema» e que associa o humor à crítica do quotidiano.

Os livros “Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano” e “Apuros de Um Pessimista em Fuga”, estão agora reunidos em “Novelas Extravagantes”, obra publicada no passado mês de maio.

Foi vogal da Associação Portuguesa de Escritores, durante as presidências de David Mourão-Ferreira (1984-1986) e Óscar Lopes (1986-88).

Orientou pós-graduações em escrita de teatro e diversas oficinas de escrita de ficção e foi professor convidado da Escola Superior de Teatro e Cinema e da Escola Superior de Comunicação Social durante vários anos.

A 9 de Junho de 2014 foi feito Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.

Prémios
– Grande Prémio De Conto e Novela APE, “A Liberdade de Pátio”;
– Prémio Município de Lisboa, “ O Livro Grande de Tebas Navio e Mariana”;
– Prémio D. Dinis, “A Paixão do Conde de Fróis”;
– Prémio Internazionalle Città di Cassino (Itália), “Os Alferes”;
– Grande Prémio A.P.E (Conto), “Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano”;
– Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB, Prémio Fernando Namora, Prémio Pégaso; internacional de Literatura, Prémio Literário Giuseppe Acerbi (Itália), “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde”;
– Grande Prémio APE (Teatro), “Se Perguntarem por Mim, não Estou, seguido de Haja Harmonia”;
– Prémio PEN Clube Português de Ficção, Grande Prémio de Literatura ITF/DST, “Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina”;
– Prémio Fernando Namora, “A Sala Magenta”;
– Prémio Vergílio Ferreira (pelo conjunto da obra).

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Consulte aqui a bibliografia.

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        “Gosto mesmo da Feira do Livro. Penso que não há em lugar nenhum mostra de livros tão colorida, luminosa, movimentada e prazenteira. Há cães, crianças, passeantes de Domingo, gelados e farturas. Árvores, relva, pássaros, melros. Encontram-se amigos, visitam-se confrades, ouvem-se os leitores, dois dedos de conversa. Bonomia e sorrisos. Aquilo é democrático. O melhor escritor do mundo cruza-se fraternalmente com o autor cabeleireiro, sacerdote, capelista ou locutor. E o rio ao fundo e o magnífico céu de Lisboa.
          Não sou de multidões e corrupios. Tive a minha dose e não foi pequena. Mas aqui parece-me haver espontaneidade, alegria, gosto da descoberta e da surpresa. Não a troco por outras Feiras que a vida me fez conhecer. Qual Salon du Livre, qual Barcelona, qual Turim… O meu medo é que queiram enclausurá-la, transformando-a num monte de gente empilhada, livros empilhados, modelo Estação do Oriente.
        Quanto aos inconvenientes, com a excepção da chuva que Deus dá, nada que não possa ser melhorado. Mesmo a rampa do lado de lá é compensada com a descida do lado de cá”.
(MdC esteve na Feira do Livro em 30 de maio e 13 de junho para falar com os leitores sobre “Novelas Extravagantes” e outras obras suas)

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                                                        . Estado Frenético de Tagarelice

.Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
       Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão.
      (…) Telefones móveis! Soturna apoquentação! Um país tagarela tem, de um momento para o outro, dez milhões de íncolas a querer saber onde é que os outros param, e a transmitir pensamentos à distância.
       Afortunados ventos que batem todas as altitudes e pontos cardeais e levam as mais das palavras, às vezes frases inteiras, parágrafos, grosas delas, para as afogar no mar, embeber nos lameiros de Espanha, gelar nos confins da Sibéria, perder nas imensidades do éter. É um favor de Deus único e verdadeiro. O país pereceria num sufoco, aflito de rouquidões, atafulhado de vocábulos, envenenado de sandices, se a Providência caridosa lhos não disseminasse por desatinadas paragens.”

in “Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina”

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Leia aqui outros textos do autor.

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MJL

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