Natália Correia

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           “O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor.”

         “Os meus mestres foram todos os homens e mulheres que me deslumbraram em leitura e não só: em exemplos de vida.”

Nascida na ilha de São Miguel, veio com onze anos para Lisboa com a mãe e a irmã, emigrando o pai para o Brasil. Estudou no Liceu Filipa de Lencastre e deu início à sua vida profissional como jornalista no Rádio Clube Português.

Quem a rodeava e com ela privava ou trabalhava desde logo se apercebia da sua forte personalidade e da sua tenacidade em atingir os objetivos que se propunha, sem se deixar subjugar, não prescindindo de ser ela própria, mesmo que tal lhe trouxesse dissabores. Dominadora, encantadora, provocatória, polémica, irreverente, afetiva, lutadora,… assim a retratavam amigos e conhecidos.

Nas décadas de 50 e 60, a sua casa, em Lisboa, foi não só ponto de encontro de grandes figuras da cultura portuguesa, mas também um dos locais de resistência ao regime de Salazar.

Em 1968, fundou, com Isabel Meyrelles, Júlia Marenha e Helena Roseta, O Botequim, na Graça, (encerrado após a morte de Natália Correia, em 1993, reabriu posteriormente como sede da Fundação José Afonso, mais tarde como livraria infantil, recuperando em 2010, a sua antiga mística, com noites de poesia e concertos), sendo ali que, durante as décadas de 70 e 80, se reuniu grande parte da intelectualidade portuguesa, de Fernando Dacosta a David Mourão-Ferreira, António Alçada Baptista, José-Augusto França, Luiz Pacheco, Ary dos Santos e José Cardoso Pires, entre outros. Ali se discutia política, arte, filosofia, literatura, cantava-se, comia-se,…

Foi amiga de António Sérgio (esteve associada ao Movimento da Filosofia Portuguesa), David Mourão-Ferreira (“a irmã que nunca tive”), José-Augusto França (“a mais linda mulher de Lisboa”), Mário Cesariny (“era muito mais linda que a mais bela estátua feminina do Miguel Ângelo”), Ary dos Santos (“beleza sem costura”), Almada Negreiros, para citar apenas alguns.

Com outros intelectuais e artistas, participou em acontecimentos marcantes da oposição democrática, com relevo para a fundação do Movimento de Unidade Democrática (MUD), as campanhas para a Presidência da República de Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958). Apoiou a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), em 1969, liderada por Mário Soares (seu amigo e admirador de sempre), que disputou as eleições legislativas nos círculos de Lisboa, Porto e Braga, e que se encontra na génese do Partido Socialista. Participou nos protestos contra o assassinato de Humberto Delgado, insurgiu-se contra a reabertura do Tarrafal, contra o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores por ter premiado a obra de Ludovino Vieira, preso no Tarrafal. Subscreveu documentos de solidariedade a presos políticos e às greves universitárias.

Logo após o 25 de Abril, foi deputada pelo Partido Popular Democrático (PPD), presidido por Francisco Sá Carneiro, de 1979 a 1980 e de 1980 a 1983, e pelo PRD, como independente, de 1987 a 1991. Com um invulgar talento oratório, interveio apaixonada e memoravelmente na Assembleia da República em defesa da língua portuguesa, da valorização do património cultural, dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, no debate sobre interrupção voluntária da gravidez.

Evidenciando-se pelo arrebatamento lírico, pela exuberância barroca, pelo ímpeto romântico, pela truculência satírica, fazendo incursões pelo herético e pelo erótico, a sua obra estende-se por géneros variados, desde a poesia (é nela que se expõe completamente), ao romance, teatro e ensaio, e está traduzida em várias línguas. Colaborou em diversas publicações portuguesas e estrangeiras, e marcou presença na televisão, com o programa “Mátria”, onde advogou uma forma especial de feminismo.

A 13 de Julho de 1981 foi feita Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, recebendo, em 1991, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro “Sonetos Românticos”, ano em que seria também feita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade.

Na madrugada de 16 de Março de 1993, morreu, subitamente, com um ataque cardíaco, em sua casa, depois de regressada de O Botequim, deixando um vazio na cultura portuguesa muito difícil de preencher. Legou a maioria dos seus bens à Região Autónoma dos Açores, que lhe dedicou uma exposição permanente na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, instituição que tem à sua guarda parte do seu espólio literário que partilha com a Biblioteca Nacional de Lisboa.

“A Natália era um daqueles seres muito raros que vêm do futuro, que vêm adiantados ao tempo, que não cabem no tempo, nem no espaço, nem no corpo, nem nos comportamentos que nos estão destinados. Ela ultrapassava, extravasava tudo isso.”,assim a definiu Fernando Dacosta em “A Senhora da Rosa (Natália Correia)”, um documentário realizado para a RTP-Açores, em 1999.

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Consulte aqui a bibliografia.

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Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete

e uma alma para ir à escola

mais um letreiro que promete

raízes, hastes e corola.

 

Dão-nos um mapa imaginário

que tem a forma de uma cidade

mais um relógio e um calendário

onde não vem a nossa idade.

 

Dão-nos a honra de manequim

para dar corda à nossa ausência.

Dão-nos um prémio de ser assim

sem pecado e sem inocência.

 

Dão-nos um barco e um chapéu

para tirarmos o retrato.

Dão-nos bilhetes para o céu

levado à cena num teatro.

 

Penteiam-nos os crânios ermos

com as cabeleiras das avós

para jamais nos parecermos

connosco quando estamos sós.

 

Dão-nos um bolo que é a história

da nossa história sem enredo

e não nos soa na memória

outra palavra que o medo.

          

Temos fantasmas tão educados

que adormecemos no seu ombro

somos vazios despovoados

de personagens de assombro.

 

Dão-nos a capa do evangelho

e um pacote de tabaco.

Dão-nos um pente e um espelho

pra pentearmos um macaco.

 

Dão-nos um cravo preso à cabeça

e uma cabeça presa à cintura

para que o corpo não pareça

a forma da alma que o procura.

 

Dão-nos um esquife feito de ferro

com embutidos de diamante

para organizar já o enterro

do nosso corpo mais adiante.

 

Dão-nos um nome e um jornal,

um avião e um violino.

Mas não nos dão o animal

que espeta os cornos no destino.

 

Dão-nos marujos de papelão

com carimbo no passaporte.

Por isso a nossa dimensão

não é a vida. Nem é a morte.

 

                                         in Dimensão Encontrada

 

Leia aqui outros poemas da autora.

 

MJL

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