Lídia Jorge

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      “É indispensável e quem pensa que se pode dispensar comete um erro absoluto. O papel mais importante da literatura é ela permitir que nós – com a matéria prima do pensamento, a gramática das palavras – alimentemos o nosso cérebro lento. A capacidade de reflexão, de invenção, de sonho, de evasão, que faz do ser humano um ser feito para a irrealidade e portanto o torna humano. Por outro lado, dá-nos a capacidade de treinar a alteridade, isto é, de imaginarmos que podemos viajar dentro de uma pessoa diferente de nós. Isso é a base da criação dos valores. Aprendermos a subverter o nosso papel, aprendermos a não nos colocarmos só como o centro do mundo mas vermos que o mundo tem vários centros – relativizarmos a nossa própria posição. Não digo isto de uma perspectiva moral mas de uma perspectiva antropológica que faz com que sejamos seres mais para o desejo do conhecimento, da partilha e da fraternidade do que para a violência. “

                                                                sobre o papel da literatura na sociedade atual

Licenciada em Filologia Românica, foi professora em Lisboa, Angola e Moçambique, para onde partiu em 1970. Ali viveu o marcante ambiente da Guerra Colonial que, mais tarde, retrataria no romance “A Costa dos Murmúrios” através da perspetiva da mulher de um oficial do exército português de serviço em Moçambique.
De regresso a Lisboa e à atividade docente, em 1980 publicou o romance “O Dia dos Prodígios”, uma alegoria do país fechado e parado que Portugal era sob a ditadura, à espera de uma força que o transformasse, e que lhe valeu o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa. Este romance, com grande impacto junto do público e da crítica, foi considerado por muitos um marco na literatura portuguesa.
“De facto há pessoas que o dizem, mas eu não sei. Sei que na minha vida foi um grande marco. […] percebo que há leituras muito comovidas em torno dele. Quando se faz o balanço dos livros do séc. XX muitas vezes integra-se “O Dia dos Prodígios” entre os livros marcantes mas não sei o que ele virá a ser no futuro. Sei que me honro de tê-lo escrito, foi uma espécie de prenda que a vida me deu. Acreditei plenamente no impulso literário […]. Era um livro com uma história que a princípio estava fora de moda, porque era sobre o povo. Além disso utilizava uma linguagem que literariamente estava ultrapassada, mas eu escrevi para que esse universo não fosse esquecido. Acabou por ser um livro que tem uma unidade que toca os leitores e eu estou contente que isso tenha acontecido.
A par da escrita (cujo processo encara como uma “alquimia” inexplicável, afirmando que “o impulso para a escrita é quase tão antigo como eu ter aprendido a ler e a escrever”), colabora regularmente com jornais e revistas e foi professora convidada da Faculdade de Letras de Lisboa, atividade que interrompeu para desempenhar funções na Alta Autoridade para a Comunicação Social, entre 1990 e 1994.
Os seus livros têm-lhe merecido variadíssimos prémios e estão traduzidos para diversas línguas.

Prémios à autora:

– Prémio Vergílio Ferreira, 2015;
– Prémio Luso-Espanhol Arte Cultura, 2014;
– Prémio da Latinidade «João Neves da Fontoura», 2011;
– Grande Prémio SPA/Millennium BCP Carreira, 2007;
– Prémio Máxima de Literatura, 1999.

Prémios à obra:

– Prémio Literário de Novela e Romance Urbano Tavares Rodrigues, 2015 (“Os memoráveis”);
– Prémio Charles Bisset, da Associação Francesa de Psiquiatria, 2008 (“Combateremos a sombra”);
– Prémio de Literatura Albatroz, da Fundação Günter Grass, 2005 (“O vento assobiando nas gruas”);
– Prémio do Público do Salão de Literatura Europeia, 2005 “(O vento assobiando nas gruas”);
– Prémio Literário Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa, 2004 (“O vento assobiando nas gruas”);
– Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB, 2002 (“O vento assobiando nas gruas”);
– Prix Jean Monnet de Littérature Européenne, 2000 (“O vale da paixão”);
– Prémio PEN Clube Português de Novelística, 1999 (“O vale da paixão”);
– Prémio Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa, 1998 (“O vale da paixão”)
– Prémio D. Diniz, 1998 (“O vale da paixão”);
– Prémio Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa, 1995 (“O Jardim sem Limites”);
– Prémio Literário Município de Lisboa, 1984 (“Notícia da Cidade Silvestre”);
– Prémio Literário Município de Lisboa, 1982 (“O Cais das Merendas”);
– Prémio Ricardo Malheiros, 1980 (“O dia dos prodígios”).

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Consulte aqui a bibliografia.

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Sangue vermelho

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Em Portugal, não mora nenhum rei.
O nosso sangue azul corre na constituição
Na noite da eleição, e na força que tem
A lei.

De resto, no coração dos portugueses
Todo o sangue é vermelho. E o progresso
Quando vier, há-de ser fruto de sua espuma
E seu conselho.

in “Retratos da República”, de Veríssimo Dias e Ricardo Faria Paulino

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                                                                  .   15 conceitos

TENTAÇÃO – Segundo o Génesis, tudo começou nas faces de uma maçã. Uma engenhosa parábola para explicar que o interdito é a essência daquilo a que chamamos humanidade.
ESPELHO – Deve ser colocado à média luz, ou apresentar um grão de imperfeição como certos espelhos de Veneza. Distanciar a realidade do seu reflexo é o princípio da transfiguração e da beleza.
CRISE – Disse-me um economista que a única maneira de enfrentar a grande crise consiste em pensar que todos os dias uma crise nasce, todos os dias uma crise se encerra. Eficaz, mas faz tristeza.
LUTA – Pela amizade, enquanto os amigos perdurem. Pelas causas, enquanto os fins as justificam. Pela vida, até à morte, enquanto a vida for digna. Mas difícil, difícil, é estabelecer os limites.
DEFEITO – Entre defeito e virtude, não cabe um papel de seda. Grandes preguiçosos transformam-se em santos pacientes. Terríveis narcisos, em actores geniais. Alguns tiranos domésticos foram poderosos líderes.
INJUSTIÇA – Nascer-se súbdito, ter-se força para deixar de sê-lo, e não se possuir os meios. Ser-se súbdito involuntário do fanatismo, da ignorância, da má lei. Nada mais injusto do que essa vassalagem forçada vivida de olhos abertos.
POLÍTICA – Prostitutos da esperança, pelo menos de quatro em quatro anos, acreditamos que alguém irá fazer–nos bem. E pensar que é isto que nos salva de transformarmos a esperança em fé.
APRENDER – Aprender não é acumular. O que uma geração aprende a outra esquece. Na escolha do que não pode ser esquecido do passado reside a arte de fabricar o futuro.
SEGREDO – Cada um transporta consigo o segredo que merece. Mas, no mínimo, faremos parte do segredo do Mundo, esse alfabeto que resiste.
FAMÍLIA – Fala-se de laços de sangue, voz do sangue, afinidade consanguínea. Não gosto de sangue. Prefiro imaginar que a família é o espaço do nosso primeiro contrato social de entendimento.
AMOR – Palavra tão vasta que nela o sentido se afoga. Eu prefiro vê-la carregada de determinativos, circunstâncias, complementos. Amor próprio, amor-perfeito, pelo amor de Deus.
AVENTURA – O primeiro passo da criança, entre o berço e a porta. O último passo do velho, entre a porta e a cama. No intervalo, a viagem à volta da Terra ou o voo até às crateras da Lua.
NOITE – Quando o dia desiste, chega a sombra da noite. É nela que pensamos encontrar a alegria que a claridade não dá. Os industriais da noite conhecem essa nossa adolescência.
UTOPIA – Pobre Thomas More. O rei fez-lhe aquela maldade. E assim o seu caso deixou um forte aviso – O de que não há utopias grátis. Não se pode acreditar em sonhos de sofá.
FIM – Estamos a falar da circunferência. Se essa figura geométrica for verdade, o fim e o princípio estão unidos. Mas, entre o desejo e a prova, há muito mais do que um diâmetro.

                publicado na rubrica Palavra Puxa Palavra, Expresso | Única, 07/08/2010

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Leia aqui outros textos da autora.

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MJLeite

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