José Craveirinha

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«Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. Do Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato… A seguir, fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: seu irmão. E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique. A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta. Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação. Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta. Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas a noite.»

 Filho de pai algarvio cuja família partira para Moçambique em 1908 em busca de fortuna, estudou na escola «Primeiro de Janeiro», pertencente à Maçonaria. Sendo o pai um modesto funcionário e, na altura já reformado, José Craveirinha teve de ser sacrificado, ficando pela instrução primária, para que seu irmão mais velho fizesse o liceu. Mas Craveirinha, que então já lia muito, influenciado por seu pai, grande apaixonado de Zola, Victor Hugo e Junqueiro, passa a fazer em casa o curso que o irmão fazia no liceu, acompanhando as lições que este ia tendo.

Iniciou a sua atividade jornalística no Brado Africano, vindo a colaborar depois no Notícias, onde foi também revisor, na Tribuna, no Notícias da Beira, na Voz de Moçambique e no Cooperador de Moçambique. Neste último, publicou uma série de artigos ensaísticos sobre folclore moçambicano que constituem uma importante contribuição para o tema.

Foi, todavia, na poesia (de forte caráter social que radica nas camadas mais profundas do povo moçambicano) que Craveirinha se revelou como um destacado caso nas letras de língua portuguesa, afirmando-se “a incomensurável distância, o maior poeta africano de expressão portuguesa”, segundo o escritor, também moçambicano, Rui Knopfli. Estrear-se-ia como poeta também no Brado Africano de Lourenço Marques, em 1955, seguindo-se a publicação de poemas seus no Itinerário da mesma cidade e em jornais e revistas de Angola, Portugal (nomeadamente em Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império) e Brasil.

 Figura em todas as antologias de poesia africana de língua portuguesa que desde então se publicaram e também em muitas antologias de poesia africana de todas as línguas.

A sua estreia em livro deu-se com Chigubo, editado em Lisboa em 1964 pela Casa dos Estudantes do Império e logo apreendido pela PIDE, que o utilizou como prova nos processos de que foi vítima durante o período em que esteve preso na célebre cela 1 (que daria título à obra publicada em 1980) com Malangatana e Rui Nogar, entre outros, de 1965 a 1969.

Antes, em 1962, obtivera o Prémio Alexandre Dáskalos da Casa dos Estudantes do Império com  a coletânea de poemas Manifesto,  . Obteria depois numerosos prémios em Moçambique, Itália (o Prémio Nacional de Poesia e outros) e Brasil, além do Prémio Lotus da Associação de Escritores Afro-Asiáticos, de cujo júri passou depois a fazer parte. Foi o Prémio Camões de 1991.

Está traduzido em várias línguas e é grande a relação de estudos dedicados à sua poesia. Usou também os nomes: Nuno Pessoa, Mário Vieira, J. C., J. Cravo e José Cravo.

Foi o primeiro presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, entre 1982 e 1987. Em sua homenagem, esta Associação, em parceria com a Hidroelétrica de Cahora Bassa, instituiu, em 2003, o Prémio José Craveirinha de Literatura.

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Um homem não chora

Acreditava naquela história

do homem que nunca chora.

 

Eu julgava-me um homem.

 

Na adolescência

meus filmes de aventuras

punham-me muito longe de ser cobarde

na arrogante criancice do herói de ferro.

 

Agora tremo.

E agora choro.

 

Como um homem treme.

Como chora um homem!

 

Aforismo

Havia uma formiga

compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

 

Estávamos iguais

com duas diferenças:

 

Não era interrogada

e por descuido podiam pisá-la.

 

Mas aos dois intencionalmente

podiam pôr-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.

 

 Fábula

Menino gordo comprou um balão

e assoprou

assoprou com força o balão amarelo.

 

Menino gordo assoprou

assoprou

assoprou

o balão inchou

inchou

e rebentou!

 

Meninos magros apanharam os restos

e fizeram balõezinhos.

 

Reza, Maria

Suam no trabalho as curvadas bestas

e não são bestas

são homens, Maria!

 

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos

e não são cães

são seres humanos, Maria!

 

Feras matam velhos, mulheres e crianças

e não são feras, são homens

e os velhos, as mulheres e as crianças

são os nossos pais

nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

 

Crias morrem à míngua de pão

vermes na rua estendem a mão a caridade

e nem crias nem vermes são

mas aleijados meninos sem casa, Maria!

 

Do ódio e da guerra dos homens

das mães e das filhas violadas

das crianças mortas de anemia

e de todos os que apodrecem nos calabouços

cresce no mundo o girassol da esperança

 

Ah! Maria

põe as mãos e reza.

Pelos homens todos

e negros de toda a parte

põe as mãos

e reza, Maria!

 

MJLeite

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