História que os Professores de Geologia devem conhecer (4)

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IDADE MÉDIA

Situada entre aproximadamente os séculos V e XV, a Idade Média foi um tempo de alastramento do cristianismo e da vida cultural na Europa ocidental, sobretudo através do surgimento de mosteiros da Ordem Beneditina. Seguidores de São Bento de Núrcia (480-547), os monges desta comunidade cristã, iniciadores do movimento monacal, foram os herdeiros da cultura latina e os depositários do essencial do saber do mundo antigo. Estão entre eles os criadores do enciclopedismo, com destaque para Santo Isidoro de Sevilha (570-636) que nos deixou “Etymologiae sive origines”, publicado oito séculos depois, em 1483.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, parte importante do conhecimento produzido e ensinado na Antiguidade sobreviveu graças às traduções que eruditos árabes e judeus fizeram das obras clássicas. Tal permitiu que a alquimia dos chineses, babilónios e egípcios e a filosofia dos gregos reaparecessem na Europa medieval. Foi o tempo da “escolástica” (do grego scolastikós, instruído), o método de pensamento dominante no ensino nas universidades medievais europeias. Entendida como uma via de harmonização da fé com a razão, a escolástica procurou conduzir a filosofia no interesse da teologia ou, numa outra versão, conciliar o pensamento de Aristóteles com a doutrina da Igreja. As obras então publicadas nos campos da filosofia e da teologia revelam a redescoberta de Aristóteles e da sua ênfase no racionalismo e no empirismo filosófico, correntes do pensamento que conduziram à introdução da lógica no discurso, constituindo uma via interessada em abordar, de forma sistémica, a razão e a verdade da Fé.

Na história das ciências, em geral, é necessário recordar o grande filósofo de origem árabe, Abu al-Walid Ibn Munhammad Ibn Ruchd (1126-1198), mais conhecido por Averrois (distorção latina do seu cognome árabe). Nascido em Córdova, na vizinha Espanha, então território muçulmano, tido como o mais afamado pensador islâmico da Idade Média, Averrois viveu muito à frente do seu tempo, abrindo o caminho para o Renascimento e influenciando, significativamente, a filosofia europeia do século XII, em que viveu, e nos seguintes. Intelectual de grande ecletismo, foi médico, astrónomo, jurista e teólogo. Estudioso do direito canónico muçulmano, foi um dos maiores conhecedores e comentadores do pensamento de Aristóteles, tendo ficado conhecido na história da filosofia pelo cognome de “O Comentador”. Ao afirmar que, “com exceção do sobrenatural, o pensamento se deve sujeitar à força da razão”, este muçulmano ibérico, contemporâneo do nosso rei Afonso Henriques, deve ser considerado um precursor do pensamento científico e, neste sentido, a sua influência foi grande e decisiva na evolução da ciência, em geral.

Na sequência da tradição árabe de recuperação da filosofia grega, seguidor do aristotelismo, Averrois soube fundi-lo com uma parcela de platonismo. Assim, afirmava que “a par da verdade óbvia do dia-a-dia, observável e aceite pelo povo, e da verdade mística da Fé defendida e propalada pelos teólogos, há a verdade científica, fruto da razão, podendo estar em desacordo umas com as outras”. Num tempo em que a teologia dominava sobre a filosofia natural (nome da então história natural ou ciência da natureza), as suas ideias alastraram entre a comunidade de estudiosos cristãos da Universidade de Paris, criando uma corrente de pensamento científico puro e independente das crenças religiosas, oposto à envelhecida tese de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual havia uma única verdade, a dos santos evangelhos. Para Averrois, uma dada afirmação pode ser teologicamente verdadeira e filosoficamente (cientificamente) falsa e vice-versa. Embora não tenha abordado temas diretamente relacionados com as ciências da Terra, a intensa defesa que fez do pensamento científico, advogando o naturalismo exclusivamente racional, e da sua independência relativamente aos dogmas da Igreja, deram sustentáculo ao avanço, tantas vezes difícil, levado a cabo, primeiro, por naturalistas (os estudiosos da filosofia natural) e, mais tarde, por geólogos.

A Andaluzia era, então, um dos mais notáveis centros de sabedoria da humanidade. Muitos dos textos dos filósofos gregos salvos das bibliotecas de então foram aqui traduzidos, dando lugar a um movimento intelectual notável que acabou por ser aniquilado pela reconquista cristã. Uma tal hegemonia intelectual determinou que, durante os últimos quatro séculos da Idade Média, o árabe foi a língua dominante na filosofia e na ciência embrionária no espaço europeu. Durante parte da sua vida, Averrois contou com a proteção dos califas locais, até que foi desterrado por Abu Yusuf Ya’qub al-Mansur que, na mesma linha das hierarquias do catolicismo, considerou as suas opiniões desrespeitadoras e em desacordo com o Corão. Muito da sua obra acabou também por ser condenada pela Igreja Católica.

No século XIII, o estudo e o ensino transitaram dos mosteiros e conventos para as chamadas escolas catedrais (ou colégios episcopais), criadas por toda a Europa, estas que, por seu turno, foram os embriões das universidades nos centros urbanos mais importantes, privilegiando o ensino de disciplinas como teologia, gramática, retórica, dialéctica (lógica), aritmética, geometria, astronomia, direito, medicina e música. Entre as Universidades de então destacam-se as de Salerno, Bolonha, Paris, Oxford, Montpellier, Arezzo, Salamanca, Pádua, Orleães, Roma, Siena e Lisboa.

Tomás de Aquino (1225-1274), que foi um seguidor de Aristóteles e de Averrois, como se verá adiante, opôs-se, no entanto, ao naturalismo exclusivamente racional deste ilustre filósofo.
Visto como o mais ilustre professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, o filósofo e alquimista dominicano alemão Albrecht von Bollstädt (1206-1280), o Doctor Universalis, é conhecido entre nós por Alberto, o Grande ou Alberto Magno e, também, por Maître Aubert, ou simplesmente Maubert. Tendo estudado o pensamento de Aristóteles e o dos filósofos árabes, produziu uma das mais importantes sínteses da cultura medieval e defendeu a coexistência pacífica da ciência e da religião, tendo sido o primeiro a aplicar as ideias do fundador do Liceu de Atenas no pensamento cristão. Mas não se limitou a repetir a obra do “Estagirita” (Aristóteles nasceu em Estagira, antiga cidade da Macedónia, hoje Grécia). Procurou recriá-la com a sua própria experiência e as suas observações.

No propósito de subordinar o aristotelismo à fé cristã, o Papa Gregório IX incumbiu Alberto Magno dessa árdua tarefa. Em resultado do seu trabalho, a física e a metafísica, a lógica, a ética, a psicologia e a política de Aristóteles passaram a fazer parte da escolástica. Lembrado como o maior filósofo e teólogo cristão da Idade Média, foi também figura de grande prestígio no mundo da ciência do seu tempo, em domínios mais tarde incluídos na química e na mineralogia, que realizou na sua qualidade de alquimista. Após concluir os seus estudos em Pádua e em Paris, Alberto optou pela vida religiosa, ingressando na Ordem de São Domingos, em 1223, tendo chegado à dignidade de Bispo de Regensburgo (Ratisbona).

(continua)

A. M. Galopim de Carvalho

Um comentário para “História que os Professores de Geologia devem conhecer (4)”

  1. Magnífico! A capacidade de mobilizar tantas áreas do conhecimento numa linguagem simples, ritmada, intensa. Queremos mais. Mais uma vez muito obrigado.

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