Ary dos Santos

 

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Poeta e declamador português, proveniente de uma família da alta burguesia, com antepassados aristocratas, estudou no Colégio de São João de Brito, em Lisboa, onde foi um dos primeiros alunos. Após a morte da mãe, vê publicados, pela mão de vários familiares, alguns dos seus poemas. Tinha catorze anos e viria, mais tarde, a rejeitar esse livro. Ary dos Santos revelaria, verdadeiramente, as suas qualidades poéticas em 1954, com dezasseis anos de idade. Várias poesias suas integraram então a Antologia do Prémio Almeida Garrett.

Pela mesma altura, abandona a casa da família e, para seu sustento económico, exerce as mais variadas atividades, desde a venda de máquinas para pastilhas elásticas, até ao trabalho numa empresa de publicidade. Continua a escrever e a sua estreia literária efetiva dá-se com a publicação de A Liturgia do Sangue, em 1963. Em 1969 adere ao Partido Comunista Português, com qual participa ativamente nas sessões de poesia do então intitulado Canto Livre Perseguido.

Através da música chegará ao grande público, concorrendo, por mais que uma vez, ao Festival RTP da Canção. Com Fernando Tordo escreve mais de 100 poemas para canções do músico e o duo Tordo/Ary continua a ser, até hoje, um dos mais produtivos da história da música portuguesa. São de suas autorias canções intemporais como Tourada, Estrela da Tarde, Cavalo à Solta, Lisboa Menina e Moça, O amigo que eu canto, Café, Dizer Que Sim à Vida e Rock Chock.

Autor de mais de seiscentos poemas para canções, Ary dos Santos gravou, ele próprio, textos ou poemas de e com muitos outros autores e intérpretes. Notabilizou-se também como declamador, tendo gravado um duplo álbum contendo O Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira.  

A sua obra permanece na memória de todos e muitos dos seus poemas mantêm-se atuais e cantados no passado e no presente por cantores de renome.

A 4 de Outubro de 2004 foi feito Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, a título póstumo.

 Para consultar a bibliografia clique aqui.

Quando um homem quiser

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

 

Os putos

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.

 

Mª José Leite


Um comentário para “Ary dos Santos”

  1. Abrir o Chão de Areia e reler Ary dos Santos é para mim um forte sinal de esperança e uma imensa emoção! Ary dos Santos era presença constante e obrigatória nas tertúlias juvenis da minha geração no Jardim do Príncipe Real ou no Miradouro de São Pedro de Alcântara. Cantávamos as suas músicas de intervenção, declamávamos poemas de amor e da revolução. Um dos que mais gosto é sem dúvida.

    Poeta castrado não!

    Serei tudo o que disserem
    por inveja ou negação:
    cabeçudo dromedário
    fogueira de exibição
    teorema corolário
    poema de mão em mão
    lãzudo publicitário
    malabarista cabrão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado não!

    Os que entendem como eu
    as linhas com que me escrevo
    reconhecem o que é meu
    em tudo quanto lhes devo:
    ternura como já disse
    sempre que faço um poema;
    saudade que se partisse
    me alagaria de pena;
    e também uma alegria
    uma coragem serena
    em renegar a poesia
    quando ela nos envenena.

    Os que entendem como eu
    a força que tem um verso
    reconhecem o que é seu
    quando lhes mostro o reverso:

    Da fome já não se fala
    – é tão vulgar que nos cansa –
    mas que dizer de uma bala
    num esqueleto de criança?

    Do frio não reza a história
    – a morte é branda e letal –
    mas que dizer da memória
    de uma bomba de napalm?

    E o resto que pode ser
    o poema dia a dia?
    – Um bisturi a crescer
    nas coxas de uma judia;
    um filho que vai nascer
    parido por asfixia?!
    – Ah não me venham dizer
    que é fonética a poesia!

    Serei tudo o que disserem
    por temor ou negação:
    Demagogo mau profeta
    falso médico ladrão
    prostituta proxeneta
    espoleta televisão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado não!

    José Carlos Ary dos Santos

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