José Mauro de Vasconcelos

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           “Quando a história está inteiramente feita na imaginação é que começo a escrever. Só trabalho quando tenho a impressão de que o romance está saindo por todos os poros do corpo. Então vai tudo a jato”.

Nasceu em Bangu, bairro da cidade do Rio de Janeiro, no seio de uma família muito pobre, mudando-se ainda menino para casa de uns tios, em Natal, no Rio Grande do Norte, onde foi criado. Aos nove anos de idade aprendeu a nadar nas águas do Potengi, dias de contentamento que nunca esqueceu. Com frequência entrava mar dentro, protegido por uma canoa, porque a barra de Natal estava sempre infestada de tubarões. Ganhou vários campeonatos de natação.

Mas o desporto não o distraiu dos estudos. Com10 anos, frequentava o primeiro ano do curso do ginásio, concluindo-o cinco anos mais tarde.

Ingressando na Faculdade de Medicina de Natal, abandonou o curso no segundo ano, retornando ao Rio de Janeiro a fim de conseguir melhores oportunidades. Ali, trabalha como carregador de bananas numa fazenda, instrutor de boxe e, devido ao belo porte físico, até como modelo pictórico. Viveu como pescador no litoral fluminense, onde não ficou por muito tempo, partindo em seguida para o Recife onde exerceu o cargo de professor primário num núcleo de pescadores. Dali saiu para um constante vaivém, do Norte ao Sul, e vice-versa, permanecendo pouco tempo em cada lugar, até se decidir pelo sertão e aí viver entre os índios.

Com uma vida nada fácil, foi depois para São Paulo onde teve vários empregos até que ganhou uma bolsa de estudos na Espanha. Preferindo correr a Europa, cedo abandonou os estudos.

A sua prodigiosa capacidade para contar histórias, a sua fabulosa memória e ainda a sua inesgotável imaginação, associadas a uma riquíssima experiência humana, fizeram-no sentir a necessidade “contar coisas”. Tinha um método originalíssimo. Começava por escolher os cenários onde se movimentariam as suas personagens, deslocando-se depois para os locais pretendidos, onde realizava estudos minuciosos. (para escrever “Arara Vermelha”, percorreu largas centenas de quilómetros no sertão bruto). Em seguida, dava asas à sua fantasia e, na imaginação, construía todo o romance, pois tinha uma memória que, durante longo tempo, lhe permitia lembrar-se dos mínimos detalhes.

Estreou-se com o romance “Banana Brava”, 1942, onde descreveu o mundo dos homens do garimpo, mas foi “Rosinha, Minha Canoa”, em 1962, que marcou o seu primeiro sucesso. No livro “Meu Pé de Laranja Lima”, em 1968, o seu maior sucesso editorial, serviu-se de sua experiência pessoal para retratar as bruscas mudanças da vida vividas na infância. “Meu Pé de Laranja Lima” foi escrito em apenas doze dias!

“Escrevo meus livros em poucos dias. Mas em compensação passo anos ruminando ideias. Escrevo tudo a máquina. Faço um capítulo inteiro e depois é que releio o que escrevi. Escrevo a qualquer hora, de dia ou de noite. Quando estou escrevendo entro em transe. Só paro de bater nas teclas da máquina quando os dedos doem. Só aí percebo quanto trabalhei. Sou um cara capaz de varar dias escrevendo até a exaustão.”

Dono de um estilo simples e emotivo, as suas obras transportam os leitores para um mundo de ternura e de alta sensibilidade. Na sua obra, traduzida em alemão, inglês, espanhol, francês, italiano, japonês e holandês, entre outras línguas, destaque para “Rua Descalça” (1969), “O Palácio Japonês” (1969), “Farinha Órfã” (1970), “Chuva Crioula” (1972), “O Veleiro de Cristal” (1973) e “Vamos Aquecer o Sol” (1974), tendo alguns sido adaptados para cinema.

Refira-se que a sua autobiografia foi escrita de forma incomum, numa sequência de quatro livros, de forma romanceada: “Meu pé de laranja lima”, a sua infância em Bangu; “Vamos aquecer o sol”, a mudança para Natal; “O doidão”, a adolescência; e “Confissões do Frei Abóbora”, a sua vida adulta.

 

Consulte aqui a bibliografia.

 

         Ninguém tinha levado  uma flor sequer para minha professora D. Cecília Paim. Devia ser porque ela era feia. Se ela não tivesse uma pintinha no olho, não era tão feia. Mas era a única que dava um tostão pra mim para comprar sonho recheado no doceiro de vez em quando, quando chegava o recreio.  Comecei a reparar nas outras aulas e todos os copos sobre a mesa tinham flores. Só o copo da minha continuava vazio.

         (…) Uma manhã apareci com uma flor para minha professora. Ela ficou muito emocionada e disse que eu era um cavalheiro. (…)

         E todos os dias fui tomando gosto pelas aulas e me aplicando cada vez mais. Nunca viera uma queixa contra mim de lá. (…)

        A escola. A flor. A flor. A escola…

        Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza. Quando terminou a aula, me chamou.

         – Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.

         Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.

         – Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?

         Balancei a cabeça, afirmativamente.

         – Da flor? É, sim senhora.

         – Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.           

         – Sim, mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”.         

         – Não é não, D. Cecília. O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também…

         Ela ficou espantada com a minha lógica.

         – Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro… E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.

         Ela engoliu em seco.

         – De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?          

        – Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some…

        – Eu não podia aceitar todos os dias…

        – Porquê?

        – Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.

        Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.

        – A senhora não vê a Corujinha?

        –  Quem é a Corujinha?

        – Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão.       

        – Sei. A Dorotília.

        – É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre de mais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela.

         Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo.

         – A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre.

         As lágrimas estavam descendo.

         – Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado.

         – Não é isso, Zezé. Venha cá.

         Pegou as minhas mãos entre as dela.

         – Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé.

        – Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.

         – Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?

         – Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?

        – Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu esta flor foi o meu melhor aluno. Está bem?     

        Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura.

       – Agora pode ir…

 

in “O Meu Pé de Laranja Lima”

 

MJLeite

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