Rubem Alves
“ Enquanto a sociedade feliz não chega, que haja pelo menos fragmentos de futuro em que a alegria é servida como sacramento, para que as crianças aprendam que o mundo pode ser diferente. Que a escola, ela mesma, seja um fragmento do futuro…”.
Nascido em Boa Esperança, no sul do estado de Minas Gerais, foi viver com a família para o Rio de Janeiro, em 1945, e frequentou um bom colégio que não lhe deixou saudades, devido à chacota de que era alvo por parte dos colegas por causa do seu sotaque mineiro. Sem amigos, refugiou-se na religião, estudando Teologia no Seminário Presbiteriano de Campinas e depois em Lavras, onde exerceu as funções de pastor até 1963. Com uma formação eclética, a sua vida e a sua obra transitam pela teologia, psicanálise, sociologia, filosofia e educação.
Casou-se em 1959 e teve três filhos, sendo a sua filha Raquel a musa inspiradora dos muitos contos infantis que escreveu.
Em 1963 foi estudar para Nova York, regressando ao Brasil em 1964 com o título de Mestre em Teologia pelo Union Theological Seminary.
Denunciado pelas autoridades da Igreja Presbiteriana como subversivo, em 1968, foi perseguido pelo regime militar, vendo-se obrigado a abandonar a igreja presbiteriana e a regressar com a família aos Estados Unidos, onde fez o doutoramento em Filosofia pelo Princeton Theological Seminary, com a tese “A Theology of Human Hope” e que inspirou aquilo que receberia posteriormente o nome de Teologia da Libertação.
De volta ao Brasil, deu aulas de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro; em 1971, foi professor visitante no Union Theological Seminary; em 1973, foi para a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) como professor adjunto na Faculdade de Educação, aí sendo no ano seguinte professor titular de Filosofia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Na UNICAMP foi eleito representante dos professores titulares no Conselho Universitário (1980-1985), Diretor da Assessoria de Relações Internacionais (1985-1988) e Diretor da Assessoria Especial para Assuntos de Ensino (1983-1985).
No início da década de 80 tornou-se psicanalista pela Sociedade Paulista de Psicanálise.
Em 1988, foi professor visitante na Universidade de Birmingham, em Inglaterra, e posteriormente, a convite da “Rockefeller Foundation” fez “residência” no “Bellagio Study Center”, em Itália.
Encontrou a alegria na literatura e na poesia, que lhe deram alento para enfrentar os dissabores por que passou. Admirador, entre outros, de Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Fernando Pessoa Saramago, Nietzsche, T. S. Eliot, Camus, Santo Agostinho, escreveu um grande número de obras e foi colaborador em diversos jornais e revistas.
A educação foi uma das áreas que mereceu a sua atenção e motivou muitos títulos. “Ensinar” foi por ele descrito “… como um ato de alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte. É como a vida de um palhaço que entra no circo todos os dias com a missão renovada de divertir. Ensinar é fazer aquele momento único e especial. Ridendo dicere severum: rindo, dizer coisas sérias. Mostrando que esta, na verdade, é a forma mais eficaz e verdadeira de transmitir conhecimento. Agindo como um mago e não como um mágico. Não como alguém que ilude e sim como quem acredita e faz crer, que deve fazer acontecer.”
Após a aposentação, tornou-se proprietário de um restaurante na cidade de Campinas, onde deu vazão ao seu amor pela cozinha, e onde eram também ministrados cursos sobre cinema, pintura e literatura.
Foi membro da Academia Campinense de Letras, professor emérito da UNICAMP e cidadão honorário de Campinas.
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Gaiolas ou asas
“ Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.”
Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri, conversando com professores em escolas. O que eles contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças… E eles, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam feitas, como dar o programa, fazer avaliações… Ouvindo os seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra – e os domadores com os seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a força dos tigres.
Sentir alegria ao sair de casa para ir à escola? Ter prazer em ensinar? Amar os alunos? O sonho é livrar-se de tudo aquilo. Mas não podem. A porta de ferro que fecha os tigres é a mesma porta que os fecha com os tigres. Violento, o pássaro que luta contra os arames da gaiola? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes? Ou serão as escolas que são violentas?
As escolas serão gaiolas? Vão falar-me da necessidade das escolas dizendo que os adolescentes precisam de ser educados para melhorarem de vida. De acordo. É preciso que os adolescentes, que todos tenham uma boa educação. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida melhor. Mas eu pergunto: as nossas escolas estão a dar uma boa educação? O que é uma boa educação? O que os burocratas pressupõem sem pensar é que os alunos ficam com uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E, para testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas e avaliações, acrescidos dos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.
Mas será mesmo? Será que a aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação? Sabe o que é um “dígrafo”? E conhece os usos da partícula “se”? E o nome das enzimas que entram na digestão? E o sujeito da frase “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante”? Qual é a utilidade da palavra “mesóclise”? Pobres professores, também engaiolados… São obrigados a ensinar o que os programas mandam, sabendo que é inútil. Isso é um hábito velho das escolas. Bruno Bettelheim relata a sua experiência com as escolas: Fui forçado (!) a estudar o que os professores decidiam que eu deveria aprender. E aprender à sua maneira.
O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver. Nietzsche dizia que a inteligência era a ferramenta e o brinquedo do corpo. Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender ferramentas, aprender brinquedos. As ferramentas são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do dia-a-dia. Os brinquedos são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma.
Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo da educação. Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. As ferramentas permitem-me voar pelos caminhos do mundo. Os brinquedos permitem-me voar pelos caminhos da alma. Quem está a aprender ferramentas e brinquedos está a aprender liberdade, não fica violento. Fica alegre, ao ver as asas crescer… Assim todo o professor, ao ensinar, deveria perguntar-se: Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo? Se não for, é melhor pôr de parte. As estatísticas oficiais anunciam o aumento das escolas e o aumento dos alunos matriculados. Esses dados não me dizem nada. Não me dizem se as escolas são gaiolas ou asas.
Mas eu sei que há professores que amam o voo dos seus alunos.
Há esperança…”
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MJL
Classificado em: Escritores e Poemas