Eram Uns Tristes
Num Futuro Próximo
Antigamente as pessoas liam, imagine-se. Conseguiam ler mais de três linhas, mas não sabiam esfregar os dedos num telemóvel. Os alunos não se dirigiam para a sala de aula a olhar para um ecrã transportado na mão.
É claro que não havia GPS, todos tinham de saber a localização das salas. Aguardavam em silêncio a chegada dos professores. Eram todos uns tristes. Entravam em silêncio e não estavam permanentemente a falar nas aulas. Coitados, era uma tristeza. Quando entravam num espaço coberto, como a sala de aula ou o edifício da escola, descobriam-se, isto é, tiravam o capuz, a boina, o gorro, o boné, o chapéu ou o que lhes estivesse a cobrir a cabeça, eram uns tristes. Ninguém passava o tempo todo de auriculares nos ouvidos, a não ser que fosse surdo e usasse aparelho auditivo. Também ninguém comia, mascava ou bebia na aula. As idas às Instalações Sanitárias eram durante os intervalos. Que tristeza.
Quando a aula acabava iam brincar, enquanto aguardavam a aula seguinte, não ficavam a olhar em êxtase para o ecrã do aparelho que não tinham.
A investigação era feita consultando livros ou pessoas e escreviam os trabalhos à mão. Escrever à mão, com caneta ou lápis, que coisa mais primitiva, eram uns infelizes.
Quase todos padeciam de uma doença chamada Curiosidade. Queriam saber como é o mundo, como funcionam as coisas, o que as punha a trabalhar e como a energia era transformada em movimento e ação. Coitados.
Não havia a satisfação imediata e instantânea dos dias de hoje. Ninguém fazia “Likes” sem ver o assunto. Que amargura, que perda de tempo, que exigência de concentração.
Os bons alunos não eram contemplados apenas com um diploma, recebiam livros. Imagine-se, receber livros todos os anos era como ser sempre contaminado com uma doença fatal.
Se algum adulto precisasse de se deslocar à escola, por qualquer motivo, não estava permanentemente a roçar os dedos num ecrã. Se fosse necessário registar alguma informação, escrevia-a num papel, eram uns tristes.
Ninguém fotografava pautas ou qualquer outro documento, copiavam à mão aquilo que fosse necessário. Fotografar papéis era coisa que só os espiões faziam, mas não era à frente de toda a gente. Uma tristeza.
As pessoas tratavam-se por “Senhor” ou Senhora”, o vocábulo “Você” só era usado entre pares, quando não se tratavam por tu ou de cima para baixo na hierarquia. A alternativa ao “Senhor” ou “Senhora” era, nos diálogos informais indiciando alguma deferência, a utilização do nome (ou da referência ao grau académico) na terceira pessoa. A Língua era difícil, mas a Educação também. Uns tristes.
Todos achavam que eram felizes assim, mas eram apenas uns tristes.
Sabiam quase tudo aquilo de que precisavam e se não soubessem, procuravam a informação. Ninguém (ou poucos) falava de tudo com a certeza absoluta de ser detentor de todo o conhecimento. Como estavam habituados a ler, sabiam interpretar o que liam e não viam nos textos aquilo que lá não estava escrito. Eram mesmo uns tristes sem imaginação.
Hoje em dia, nem conseguimos perceber como é que a Humanidade sobreviveu àquela verdadeira Idade da Trevas.
JML
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Há muita verdade neste artigo mas também alguns equívocos. Aqui vão algumas provocações: Os 100 melhores alunos de hoje são melhores dos que os de “hontem”. “Hontem” iam à escola 50% dos portugueses, hoje vão todos. A média baixou mas os excelentes são ainda mais excelentes e temos de integrar todos. Eu prefiro os desafios que temos, hoje.
Se se atrevessem a ler este texto, quanto tempo demorariam os verdadeiramente tristes a perceber que se tratava de uma ironia?
Gostei desta reflexão.
Relembra-nos que não devemos ficar reféns das novas tecnologias.
Quem sabe se num futuro próximo não existirá uma convivência harmoniosa entre este passado saudavelmente “triste” e as nossas incríveis tecnologias.