Afetos
A bancada era alta e eu era demasiado pequena para chegar até ela. Em bicos de pés, observava a florista e a velocidade das suas mãos a preparar as flores, a transformá-las em bonitos ramos. As flores uniam-se umas às outras harmoniosamente com as suas cores, entrelaçadas no verde da rama. A senhora era, sem dúvida, habilidosa e eu observava-a na ligeireza da minha idade. Ela soltava gargalhadas, irradiava alegria e contagiava a clientela.
– É um dom fazer sorrir os outros, sabes? – dissera-me uma vez.
Muitos anos passaram e aquela frase ficou-me retida na mente. A frase, as flores, a senhora que hoje atravessa a terceira idade.
No início da semana, fui almoçar fora com familiares. Vieram as travessas trazidas pelo único empregado do restaurante, um senhor quase octogenário. Surpreendemo-nos com a idade dele, com a insistência de ainda querer manter o estabelecimento aberto, situado no local mais recôndito, e pelo qual já pouca gente passa.
– A minha esposa partiu há um ano. A malvada doença levou-a… – confidenciou. – Já não tenho ninguém que me ajude…
Durante a refeição, escutámos as suas histórias e recordei as palavras da antiga florista e na mais-valia de podermos proporcionar sorrisos nos outros, através de palavras, gestos, afetos, e isso encher-nos o coração…
– Há uma falta de afeto hoje em dia, porque a sociedade se tornou cada vez mais fria… Há muita maldade por aí que faz julgar os demais… A sociedade está morta. Cada vez mais riqueza material e pobreza interior… – frisava.
Àquele idoso, que recusava desfrutar da solidão do seu lar e preferia viajar por memórias do passado no seu restaurante ultrapassado no tempo, o nosso pequeno momento de afeto tinha-o feito sorrir, porque muitas vezes para fazer sorrir os outros basta estarmos atentos e darmos atenção.
E tu já pensaste que tipo de afeto queres deixar ao mundo? Afeto é estendermos a mão, é sermos Alberto Caeiro todos os dias, simples, naturais, objetivos na leitura das relações. Afeto é pormos de lado pensamentos infelizes de materialismo, é matarmos as palavras duras e amarmos as mais belas. No jardim dos afetos não há julgamentos, não há muros, mas flores lexicais que podem fazer brotar no nosso coração o ramo mais belo de amizade e fraternidade.
Vera Sousa, professora de Português e Francês, 3º ciclo.
Classificado em: Apeteceu-me escrever...
Ler a prosa de Vera Sousa, sempre elegante e envolvente, é um prazer. Este texto maravilhoso é disso um exemplo.
Aconselho a leitura dos seus romances.