Sebastião da Gama
O que eu quero principalmente é que vivam felizes.
Não lhes disse talvez estas palavras, mas foi isto que eu quis dizer. No sumário, pus assim: “Conversa amena com os rapazes”. E pedi, mais que tudo, uma coisa que costumo pedir aos meus alunos: lealdade. Lealdade para comigo e lealdade de cada um para cada outro. Lealdade não se limita a não enganar o professor ou companheiro: lealdade activa, que nos leva, por exemplo, a contar abertamente os nossos pontos fracos ou a rir só quando temos vontade (…) ou a não ajudar falsamente o companheiro.
Não sou, junto de vós, mais do que um camarada um bocadinho mais velho. Sei coisas que vocês não sabem do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já me esqueci. Estou aqui para ensinar umas e aprender outras. Ensinar não: falar delas.(…).
Não acabei sem lhes fazer notar que “a aula é nossa”. Que a todos cabe o direito de falar, desde que fale um de cada vez e não corte a palavra ao que está com ela.
in “Diário”
Nascido em Vila Nogueira de Azeitão, aí viveu até aos 14 anos. Feita a 4ª classe na Escola Primária de Azeitão, frequentou os três primeiros anos do ensino secundário no Liceu Bocage, em Setúbal, altura em que se manifestou a tuberculose óssea que viria a custar-lhe a vida. Por indicação médica, mudou-se com a mãe para uma casa na Serra da Arrábida. A partir de 1939, a família passou a residir com ele no forte abandonado do Portinho da Arrábida, local que os pais transformaram em pousada e restaurante, proporcionando-lhe assim um local saudável. Frequentou, como aluno externo, os últimos quatro anos do ensino liceal, que completou com distinção, licenciando-se, em 1947, em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Em maio de 1951, casou, no Conventinho da Arrábida, com Joana Luísa, sua vizinha e amiga de infância, sendo pouquíssimo o tempo que lhes foi dado para viverem o amor desmedido que sentiam um pelo outro, já que nove meses depois teve de ser internado no Hospital de São Luís, em Lisboa, aí vindo a falecer, com apenas 27 anos.
Foi na Serra da Arrábida, rodeado pelo verde, com o mar ao fundo, que escreveu verdadeiros hinos à Natureza, desenvolvendo uma consciência ambiental. Em defesa do seu “paraíso” que começava a ser destruído pelo asfalto das estradas, dirigiu, em agosto de 1947, uma carta a várias personalidades, pedindo a defesa da Serra da Arrábida, motivando a criação da Liga para a Proteção da Natureza, em 1948, a primeira associação ecologista portuguesa. O seu livro de estreia, “Serra – Mãe”, publicado em 1945, é testemunho desta paixão pela “sua” serra.
Foi professor na Escola Industrial e Comercial (atual Escola Secundária Sebastião da Gama), em Setúbal, e na Escola Industrial e Comercial, em Estremoz, mas foi a primeira experiência como professor na Escola Industrial e Comercial Veiga Beirão, em Lisboa (onde fez o estágio para professor de Português), que deu vida ao seu “Diário”, publicado postumamente em 1958, uma reflexão pedagógica comovente sobre o que é ensinar (“ensinar é amar”). A defesa de uma relação de proximidade entre aluno e professor marcou gerações e mantém-se atual, naquela que foi/é por muitos apelidada de “pedagogia do amor”.
O escritor Manuel da Cruz Malpique (Nisa, 28 de setembro de 1902 – Porto, 6 de setembro de 1992), na sua obra “Mestres e Discípulos”, uma longa reflexão sobre as vertentes pedagógica e deontológica da profissão docente, dedicou um capítulo ao “Diário”, tendo-o este como testemunho de referência para o que é ser professor, afirmando: “Sebastião seguia, com o mais vivo interesse, os alunos de tendências reprováveis. Dentro de uma política de bondade, de inteligência e cálida persuasão, procurava trazê-los ao bom caminho. (…) Amparar e aconselhar era o seu sistema – de resultados eficientes. (…) Sebastião nunca se furtou, antes nisso punha extraordinário gosto, a elogiar as qualidades dos seus discípulos, aquilo que neles havia de prometedor. (…) Sebastião, como poeta, como homem de coração, como bom psicólogo, tinha sagrado respeito pela personalidade dos seus educandos. Entendia que é preciso ajudar a formar, de maneira construtiva, as personalidades nascentes. (…) A sinceridade foi a nota fundamental em Sebastião da Gama. A sinceridade tocada de um arzinho de doce ironia. (…)”.
Numa vida em que tudo aconteceu muito cedo e de forma intensa, se sempre se guiou pelos afetos, cativando todos pela generosidade e simplicidade das palavras e dos gestos, também sempre foi tenaz na defesa dos seus princípios, não condescendendo com modas nem pressões.
Estou- me matando prós críticos.
Hei-de cantar o que muito bem me apeteça.
Hei-de sentir, hei-de pensar, hei-de berrar o que muito bem me apeteça.
Um grande raio que os parta mais
às suas sentenças.
Se me der na maluca desato para aí dizer palavrões
ou a escrever sonetos de Camões
começados do fim pró princípio
e com os acentos todos trocados.
…
Deixem-me cá sossegado a fazer versos
marrecos ou escorreitos ou anémicos ou cheios de sangue na guelra
mas de toda a maneira versos
– uma coisa melhor que todas as suas pretensões,
todas as suas ciências, todas as suas opiniões
e que mais belos do que eles
só uma flor encarnada a nascer em cima de um telhado
sem se importar de saber se olham para ela ou não…
em carta dirigida a David Mourão-Ferreira, datada de maio de 1946
Marcado pela consciência de que a sua vida seria efémera (a tuberculose levá-lo-ia aos 27 anos), profundamente crente em Deus (“ É que, para mim, a Morte é a Porta: pela Morte ficamos em presença, a toda a hora e sentida, de Deus.”) a sua poesia descreve uma lúcida aprendizagem da morte, não como desistência e desânimo, mas antes como confiança na vida (Foi necessário ter perdido tudo/ para chegar à perfeição enorme/ de não poder perder a confiança“, in “Itinerário Paralelo”).
Após a sua morte, as revistas Árvore, Távola Redonda, de que foi colaborador, e o Jornal de Almada prestaram-lhe sentida homenagem, dedicando-lhe um número especial com inéditos seus e testemunhos e poemas de António Ramos Rosa (…o que eu odeio é ter ficado/Deixaste-me a responsabilidade tremenda de sobreviver-te/e por isso te amo e por isso descansa, poeta!), Matilde Rosa Araújo, José Régio, David Mourão Ferreira, entre outros.
Os seus versos foram e continuam a ser musicados, recitados, cantados nas vozes de Amália Rodrigues, Ana Moura, Ana Maria Bobone, para citar apenas algumas.
As Juntas de Freguesia de São Lourenço e de São Simão, em Azeitão, instituíram, com o seu nome, um Prémio Nacional de Poesia. No dia 1 de junho de 1999, foi inaugurado em Vila Nogueira de Azeitão, o Museu Sebastião da Gama, destinado a preservar a memória e a obra do “Poeta da Arrábida”, como era também conhecido.
Em 10 de junho de 1993, nas celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Mário Soares, então Presidente da República, conferiu-lhe a Grã- Cruz da ordem do Infante D. Henrique.
Consulte aqui a bibliografia.
Pelo sonho é que vamos
Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
basta a esperança naquilo que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
– Partimos. Vamos. Somos.
A verdade era bela
A verdade era bela,
como vinha nos livros.
À beirinha das águas
a verdade era bela.
Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela,
Quase todos se riram.
Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais do que os outros.
A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.
Leia aqui outros poemas do autor.
MJLeite
Classificado em: Escritores e Poemas
Obrigada, Nuno!
Este professor continua a inspirar-nos!
Como dizes, é a esperança a impedir que a agitação e o desalento vençam os professores de hoje.
MJL
Li e reli esta magnífica sintese da vida e obra de Sebastião da Gama. Em tempos tão agitados, revitaliza a nossa energia e reforça a esperança. Valeu o meu dia!