Pegadas de Dinossáurios na Praia Grande do Rodízio
“É com enorme orgulho e satisfação que publicamos um artigo enviado pelo Senhor Professor Doutor Galopim de Carvalho, patrono da Sala 3.
Inicia-se assim uma colaboração com o Chão de Areia, que nos deixa muito honrados.
A Equipa Editorial”
Em 1983, José Madeira e Rui Dias, então assistentes do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa e meus ex-alunos brilhantes, hoje professores universitários, o primeiro em Lisboa e o segundo em Évora, descobriram vários trilhos com pegadas de dinossáurios numa camada de calcário, empinada à vertical, na arriba que limita a sul a Praia Grande do Rodízio, perto de Colares, no concelho de Sintra. Estas marcas ou vestígios fósseis mostram que, há cerca de 120 milhões de anos, andaram nestas paragens corpulentos dinossáurios herbívoros (saurópodes) e carnívoros (terópodes), a avaliar pelas dimensões das respectivas pegadas.
Nesta época longínqua a paisagem era diferente da actual. A serra de Sintra só se elevaria uns 35 milhões de anos depois. A região era uma planície litoral com lagunas frente a um braço de mar, estreito e pouco profundo, a separar as terras hoje da Península Ibérica das da costa do Labrador, no Canadá, uns 25 milhões de anos antes da abertura do Atlântico Norte. É esta história que se poderia contar neste local se os responsáveis acreditassem que isso é importante. Iniciei, em 1992, junto da direcção do Parque Natural de Sintra-Cascais e da Câmara Municipal de Sintra, diligências no sentido da conveniente musealização do sítio, de modo a torná-lo acessível à fruição por parte do público, intervenção essa, sempre prometida e nunca concretizada, face a este relevante polo de atração turística.
O projeto de arquitetura, da autoria do Arqt.º Mário Moutinho, que então apresentei em nome do Museu, e toda a colaboração que, pessoalmente, prestei e prometi prestar não foram suficientes para entusiasmar os sucessivos responsáveis das duas instituições, numa obra simples e de custos relativamente baixos (cerca de 15 000 Euros) na altura, obra que a ciência, o ensino, a cultura e, até, o turismo agradeceriam. Esta inoperância, entre outras causas, é mais uma prova da incultura geológica dos portugueses, incluindo muitos dos responsáveis da administração, uma constatação que venho a fazer há décadas e que não é demais repetir.
Consciente da vulnerabilidade às intempéries do lajão que contém as pegadas, junto à escadaria que liga a praia à estrada de Almoçageme, solicitei o parecer de um técnico do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) que, não só confirmou os meus receios, como indicou o tipo de intervenção a fazer, designadamente, a impermeabilização e consolidação da rocha. Desde então as correspondentes autoridades têm conhecimento desta dramática situação e do risco que isso representa como perda, para todo o sempre, de um testemunho valioso e raro do nosso passado mais antigo. Esta vulnerabilidade do grande afloramento rochoso representa, ainda, um risco latente para os utilizadores desta escadaria e dos que, cá em baixo, frequentam a praia.
A jazida com pegadas de dinossáurios da Praia Grande já começou a ruir. Há anos, uma derrocada maior levou-lhe a parte superior da camada, atulhando e atravancando a escadaria que lhe fica na base, privando os utentes habituais de usar aquele útil percurso (Hoje esta escada está desobstruída e convenientemente arranjada, mas as pegadas continuam à mercê das intempéries).
Nas muitas visitas que tenho guiado a esta jazida, com grupos escolares e de cidadãos dos mais diversos níveis etários e socioculturais, há quase sempre alguém, menos conhecedor dos processos geológicos, que fica confuso e incrédulo ao ver pegadas tão grandes marcadas numa rocha tão dura e numa parede tão empinada.
– Diga-me cá, professor, seria possível animais tão pesados treparem, assim, como se fossem lagartixas? – Perguntou-me, no local, um participante de um grupo que acompanhei numa excursão à serra de Sintra. Mais uma vez expliquei a este e aos outros que o acompanhavam, também eles incrédulos mas calados.
– As pegadas foram deixadas numa superfície horizontal. O chão era uma lama que permitia que a pata ali ficasse marcada. Com o tempo de muitos milhões de anos, essa lama endureceu, transformando-se na rocha calcária aqui à vista.
Para explicar a quase verticalidade das camadas e da disposição, aparentemente insólita, das pegadas, desenhei um trilho numa folha de papel que, depois, arqueei e, ao mostrar-lhes a folha assim deformada, numa espécie de telha, a incredulidade desvaneceu-se.
“Galopinho” é uma das três mascotes criadas em 1998, pelo então Parque Natural de Sintra-Cascais, destinadas aos públicos infantil e juvenil, As outras duas, “Corbi” e “Manas Américas” representam, respectivamente, o corvo-marinho-de-crista (Phalacrocorax aristoteles), ave que habita o litoral do Parque, e o cravo-romano (Armeria pseudarmeria), planta ali endémica. As três mascotes simbolizam, pela mesma ordem, as componentes geológica, faunística e florística do Parque. “Galopinho” evoca a Jazida com pegadas de dinossáurios situada na arriba a sul da Praia Grande do Rodízio (Colares). O seu criador, o desenhador Rui Cardoso, deu-lhe o ar de um fantasminha de um dinossáurio juvenil, risonho e doce, ao gosto das crianças. Esta homenagem simpática e carinhosa que os responsáveis do Parque entenderam prestar-me, foi-me apresentada no Pavilhão da União Internacional da Conservação da Natureza, durante a Exposição Mundial de Lisboa, de 1998.
Amplamente divulgado em t-shirts, bonés, capas de cadernos escolares e outras merchandises dirigidas, sobretudo, aos mais jovens, o “Galopinho”, representa para mim, mais do que o reconhecimento pelas lutas que, em vão, tenho travado nesta região, pela salvaguarda e valorização do património geológico, premeia o intenso relacionamento que mantive com o público juvenil que, carinhosamente, me distinguia como o “avô dos dinossáurios”. Trata-se de um prémio que, evidentemente, muito me apraz, mas que não consola a mágoa e a frustração que me invadem face ao desinteresse dos sucessivos responsáveis do Parque, da estrutura oficial que lhe sucedeu e da Autarquia pela jazida que inspirou a simpática figurinha.
(Adaptado do meu livro “FORA DE PORTAS – Memórias e Reflexões”, Âncora Editora, 2008)
Galopim de Carvalho
Classificado em: Agenda Científica, Divulgação
Um texto envolvente e brilhante! Este artigo apela também à persistência e à perseverança. Não vale desistir e deixar para trás os nossos sonhos. Que o Chão de Areia seja mais um contributo para a defesa do nossa maior riqueza – O Parque Natural Sintra-Cascais. Veja bem-vindo Professor Galopim de Carvalho e muito obrigado pela generosidade.