Mil Cento e Quarenta Vezes a História de Portugal
No dia-a-dia, o tempo mede-se em horas, minutos e segundos nos mostradores dos nossos relógios de pulso. Na História, mede-se em anos, séculos e milénios, usando, para tal, pergaminhos, tabuletas de barro, papéis e outros documentos com significado cronológico. Na Pré-história do Homem faz-se outro tanto com base em utensílios e outros objectos e fala-se de milhares e, nalguns casos, de milhões de anos.
A escala do tempo dilata-se ao historiarmos o passado geológico e ainda mais se recuarmos aos começos do Sistema Solar e do Universo, onde os milhares de milhões de anos marcam as etapas percorridas com uma imprecisão que se esfuma nessa “eternidade”. Mil milhões de anos a mais ou a menos, nos primórdios da matéria de que somos, representam o mesmo grau de imprecisão do milhão de anos a mais ou a menos no tempo dos dinossáurios, do mais ou menos um ano na história do velho Egipto, ou do mais dia – menos dia, mais minuto – menos minuto, no tempo que estamos a viver, mais segundo – menos segundo, nos cronómetros dos corredores desportivos.
No decurso da nossa existência revemos, sem dificuldade, o nosso tempo, o dos avós e até o da História, mas é com esforço que abarcamos ou evocamos a vastidão do tempo geológico, com cifras que só encontram paralelo na imensidão das distâncias astronómicas.
Como na História, também a Geologia necessita de documentos e esses temo-los nas rochas, quer sejam os fósseis, quer alguns dos seus minerais contendo isótopos radioactivos. Entre as variáveis susceptíveis de serem correlacionadas com o tempo, apenas duas têm lugar de forma irreversível, uma vez que, qualquer destes dois processos se desenvolve apenas num sentido: a evolução biológica e a desintegração radioactiva natural.
Porque de uma história se trata, a Geologia tem no tempo um dos seus pilares, sendo aí encarado sob duas perspectivas distintas: a de tempo relativo e a de tempo absoluto.
Na de TEMPO RELATIVO procura-se saber se um dado evento ocorreu antes, depois ou em simultâneo com outro, isto é, se lhe foi anterior, posterior ou contemporâneo. De há muito que as relações geométricas, observáveis no terreno, entre os diversos corpos rochosos aflorantes, têm sido utilizadas no estabelecimento da ordenação cronológica dos acontecimentos geológicos de que são testemunhos. Uma tal ordenação é particularmente evidente nas rochas estratificadas, nas quais os estratos ou camadas se sucedem numa imediata sugestão de sequência no tempo.
Tal ordenação é a mesma patenteada numa pilha de papéis na secretária de um burocrata. A relação entre o empilhamento dos estratos rochosos e o curso do tempo chamou a atenção do dinamarquês Nicolau Steno, no século XVII, constituindo uma das primeiras ideias fundamentais da Geologia, conhecida por Princípio da Sobreposição, segundo o qual, “numa sequência estratificada não deformada, qualquer camada é mais moderna do que as que lhe ficam por baixo e mais antiga do que as que se lhe sobrepõem”.
Evidente à luz dos conhecimentos actuais, este princípio representa um avanço notável para a época em que foi enunciado. Nele se relacionam, pela primeira vez, as rochas estratificadas com o processo de deposição progressiva dos sedimentos que as integram, a que corresponde uma ideia de sucessão no tempo.
Como marcos cronológicos, também os fósseis, escalonados na cadeia evolutiva da biodiversidade, nos permitem uma abordagem do tempo relativo. No que se refere à evolução biológica, desde há muito que se constatou, através dos fósseis, que as espécies animais e vegetais do passado foram surgindo ao longo da história da Terra, se mantiveram durante períodos mais ou menos longos, acabando, quase sempre, por se extinguir, não voltando a aparecer.
Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o primeiro a reconhecer os fósseis como testemunhos de outras vidas em épocas passadas. Até então e mesmo depois dele, os fósseis eram vistos como caprichos da natureza. Só no século XVIII se estabeleceu definitivamente a sua interpretação como restos de seres vivos do passado.
Os fósseis representam os elos de uma cadeia de complexidade crescente. Neste entendimento, e graças ao muito trabalho dos paleontólogos, sabemos, por exemplo, que as camadas de rochas sedimentares com fósseis de trilobites são mais antigas (Paleozóico) do que as que conservam ossadas de dinossáurios (Mesozóico) e que estas, por sua vez, são anteriores às que serviram de jazida aos mamutes ou aos australopitecos (Cenozóico), nossos avós. Este raciocínio, aqui exemplificado para grandes intervalos de tempo, ao nível das eras geológicas, faz-se correntemente para intervalos mais curtos, como são os representados pelos sistemas (períodos), séries (épocas), andares (idades), subandares e outros ainda mais reduzidos.
O mesmo tipo de conhecimentos habilita-nos a considerar geologicamente contemporâneas todas as rochas que, em quaisquer lugares, contenham os mesmos fósseis. Aplicável a muitíssimas espécies fósseis conhecidas, estes raciocínios têm vindo, a partir do século XIX, a permitir escalonar no tempo o conjunto das sequências de rochas sedimentares (e também em rochas metamórficas, num grau de intensidade relativamente baixo, como é o das séries paleozóicas de Norte a Sul de Portugal), onde se encontra o essencial do registo fóssil de toda a biodiversidade que nos antecedeu.
Na outra perspectiva, a do TEMPO ABSOLUTO, passível de quantificação, esta variável tem o sentido de duração e, assim, refere o intervalo que medeia dois acontecimentos ou o que decorreu entre um deles e o momento presente, isto é, a sua idade. Uma das vias mais frutuosas na medição do tempo geológico nasceu com a descoberta da radioactividade por Henri Becquerel, em 1896, e ganhou corpo com os trabalhos sobre a constituição e funcionamento do núcleo atómico levados a efeito por Marie e Pierre Curie e muitos outros físicos. Tais avanços da ciência, com reflexos na medição do tempo, foram sabiamente aproveitados por vários investigadores, entre os quais o geólogo inglês Arthur Holmes, que “só não foi prémio Nobel porque a Geologia não figura entre as disciplinas contempladas no respectivo regulamento”.
Executadas por rotina em muitos laboratórios de todo o mundo, as determinações de idade isotópica (baseada no comportamento natural de alguns isótopos radioactivos) de alguns minerais (feldspatos potássicos, moscovite, biotite, entre muitos outros) permitiram-nos enquadrar, em termos de cronologia absoluta, as grandes etapas da história da Terra e da Vida, muitas delas, de há muito definidas em termos de idade relativa. Sabemos hoje que a Terra se formou há aproximadamente 4540 Ma (idade ainda em discussão), que os “dinossáurios não avianos” (as aves, hoje aceites como descendentes de um certo grupo de dinossáurios, são, assim, “dinossáurios avianos”) fizeram a sua aparição há cerca de 235 Ma e que desapareceram, de vez, há 65 Ma. Sabemos que o granito do Porto tem 560 Ma, que o das Beiras tem à volta de 300 e que o de Sintra, apenas 85 Ma. E a lista de rochas e de acontecimentos de que conhecemos a idade absoluta é imensa e não pára de crescer.
O trabalho monumental empreendido pelos paleontólogos, ao longo dos séculos XIX e XX, permitiu, como se disse, um aceitável escalonamento no tempo, baseado nos fósseis, e o estabelecimento de eras, períodos, épocas e outras divisões temporais mais finas. Posteriormente, mercê dos avanços no conhecimento geológico e dos progressos da física dos isótopos e das tecnologias de análise, dispomos hoje de uma escala cronostratigráfica na qual, com pormenor sempre melhorado, as divisões temporais, baseadas nos fósseis, estão agrupadas em intervalos de tempo de diferentes hierarquias, cotados por valores numéricos referidos à unidade de tempo geológico adoptada, isto é, o milhão de anos, nada menos do que dez mil séculos, uma enormidade no horizonte temporal das nossas vidas, mil cento e quarenta vezes a história de Portugal, mas uma migalha no tempo da Terra.
(do meu livro “Como Bola Colorida – A Terra, Património da Humanidade”, Âncora Editora, Lisboa, 2007)
A. M. Galopim de Carvalho (o autor não segue o acordo ortográfico)
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